quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

Suicídio de pastores uma reflexão

Hoje, tristemente li a notícia do suicídio de mais um pastor. Faz uns meses que, num encontro com um estudante de teologia, ele me pediu que pensasse a respeito de escrever um ritual específico para o ofício fúnebre de suicidas. Nosso ritual contempla um ofício para pessoas falecidas súbita e tragicamente, mas ele sentia a necessidade de saber o que dizer num momento que é particularmente emblemático para os cristãos e cristãs, pois aprendemos desde sempre que o suicídio é um ato extremo e contrário à vontade de Deus. De fato, qualquer morte é contrária à vontade de Deus, segundo nos ensina Jesus Cristo. E a dificuldade em lidar com esses temas pode nos levar a palavras inapropriadas, que aumentam a dor e não resolvem as questões pendentes. Por outro lado, se a palavra é meramente de aceitação de uma tragédia deste porte, tememos que nosso sermão seja um incentivo para outras pessoas que também sofrem de um mal mental ou emocional profundo e sentem-se sem saída.
Quero, portanto, dizer que não tenho reflexão suficiente ainda ou uma iluminação particular de Deus sobre o tema. Assim como a Igreja Cristã contemporânea, estou sendo questionada por dentro acerca de muitas coisas que estão acontecendo apesar de tudo o que ouvimos e aprendemos e que nossos pais nos contaram sobre a vida e suas verdades, momentos e descobertas. A honestidade é um passo primeiro numa coisa séria como esta.
Respondi ao pedido do jovem seminarista que um ritual não resolve uma questão profunda, porque ele só lida com um fato depois que ele acontece. E todo cristão e cristã entende e crê, desde sempre, que o que acontece entre uma pessoa que morre e Deus é problema dos dois. Não nos cabe salvar ou condenar ninguém com nossas palavras numa hora dessas. Nosso compromisso evangélico é com as pessoas vivas. Qualquer ritual fúnebre visa aliviar a dor do luto, motivar para a vida que segue, fomentar a esperança, despertar a fé. Não quer explicar ou entender os mistérios da vida, mesmo porque não dá para fazer isso diante da morte concreta, numa hora e meia de culto, com pessoas que chegam com visões muito diversas e até contraditórias do evento.
Também lamento que a profissão ou vocação pastoral seja evocada quando se fala do suicídio de clérigos, porque isso parece aumentar o peso condenatório. Erramos, pecamos e sofremos apesar de nossa fé, muitas vezes. Não por causa dela. Antes de morrer, tenho certeza de que a fé daquele pastor o salvou muitas vezes, o impediu antes muitas vezes. Mas naquele minuto enlouquecido, que só ele e Deus sabem, ela se perdeu dos olhos dele e a tragédia acontece.
Gosto sempre de me lembrar de Jó e seus amigos. Do quanto eles foram úteis e importantes enquanto apenas choraram juntos em silêncio. Quando começaram a falar, muitos problemas apareceram. E toda vez que me vejo diante de uma dor inexplicável, de um grave delito, de uma situação que contraria minha razão e até minha fé, procuro calar primeiro, chorar primeiro e ver se entendo depois.
Então, eis o que eu acho que entendo. Ou melhor, o que eu, por enquanto, apenas sinto: cada vez mais nosso lado emocional, lúdico, imaginativo está sendo cassado na existência. Roubar-nos dessa imaginação e desse encantamento resseca a alma profundamente. Há pessoas que são doentes do corpo mesmo. Faltam hormônios, sobram hormônios, abundam disfunções que precisam de medicamentos, acompanhamento e controle da vida. Mas também há dores que são de alma, frustrações não resolvidas e emoções não tratadas que podem gerar depressão e vontade de morrer. Nesses casos, a tarefa do aconselhamento e da terapia aparentemente podem funcionar melhor. Mas há estragos da vida que são difíceis e para os quais nem sempre a cura brota instantânea. A pessoa precisa lutar como o apóstolo Paulo dizia fazer sobre seus pecados...
Então, eu me lembro de João Wesley dizendo que se a gente não pode curar, pelo menos devemos dar alívio. Abrir os ouvidos para acolher as falas sem a pressuposição de dar resposta a tudo. Calar e chorar junto quando a dor for demais. Não pressupor que uma pessoa de fé seja uma rocha inabalável, apenas que pode se colocar sobre uma, se puder se equilibrar um dia de cada vez.
Ninguém se mata por ser pastor. Ninguém se mata por ser psicólogo. Ninguém se mata por fracassar numa profissão que devia ser de esperança (essa é a sensação que uma manchete baseada na profissão quer passar).
Primeiro, temos de reconhecer que há algo errado no mundo. Pecados sociais que adoecem, mudam genéticas, envenenam o corpo, fazem surgir coisas inexplicáveis. E somamos outro pecado quando não somos capazes de falar sobre isso ou esquecer.
Depois, temos de admitir que não entendemos tudo, nem podemos explicar tudo. A seguir, assumir que nossa postura precisa ser a favor da vida, em termos de consolo aos que ficam e isso precisa ser dosado com a sabedoria de não enfatizar o ato final, mas a vida da pessoa antes daquilo. Essas posturas não são simples ou fáceis, mas sem elas ficaremos sempre na superficialidade condenatória ou redentora que não abre portas para a libertação verdadeira.
Tudo isso é o que eu sinto quando vejo que o tema da depressão é uma problemática a que a teologia deve voltar os olhos com seriedade e profundidade. Não dá para ser simplista com o tema. Não mais, quando vemos uma epidemia de mortes autoinfligidas que deve nos alertar para coisas graves que nos acontecem enquanto humanidade.
E se você chegou até aqui, quero reafirmar que não tem jeito. Coisas profundas não podem ser discutidas por memes ou textos rasos de facebook. Tem que ter textão, tem que ter discussão, tem que ter coração, tem que ter salvação. A vida humana é enorme, importante e linda. Deus desceu lá do céu pra testificar disso mais uma vez. Não podemos nos furtar a esse ato encarnatório na dor do irmão e da irmã. Nós podemos evitar a próxima morte. Pra isso, temos de enfrentar a vida. Unidos.
(Bispa Hideide Torres)

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